O matador de cangaceiros – ATO 1

(instrumental de pífanos. ninguém no palco.)

(o prefeito chega ao escritório de sócrates, o matador de cangaceiros. ele entra pela direita enquanto sócrates está sentado à escrivaninha, bem-vestido com paletó, gravata e chapéu. aparentemente está sozinho. o prefeito está acompanhando de um soldado que fica na porta acompanhando em silêncio toda a ação).

(encerra o instrumental de pífanos.)

prefeito

boa tarde! sou o prefeito de uma cidade aqui próxima e vim falar com o famoso caçador de cangaceiros, que atende pelo nome de sócrates, por acaso é tu?

sócrates

sô eu. i’si vêintéqui onde tô é purque tem certeza di quem sô e confia nu’qui faço. qui deseja?

prefeito

apenas ouvi seu nome na propaganda boca a boca que arrodeia o sertão. vim aqui, como tu já deve presumir, à procura de teus serviços. chegou ao meu conhecimento que o bando do cangaceiro oséias quer invadir minha cidade e… mas primeiro quero saber mais do seu histórico de caçador de cangaceiros.

sócrates

(mudando de assunto) tâbéim ôví buato sobr’uma tropa di’cangaceiro arrudian’a cidade, só num sabia qual bando si tratava.

prefeito

bom, mas eu lhe conheço de propaganda e não tenho certeza do mérito de seu trabalho, pois nunca o vi em ação, e nenhum dos coronéis, que por aqui conheço, e com que tenho contato, também não sabem, ou não viram, ou não tiveram conhecimento de suas andanças como um matador de cangaceiros. mas o povo, que me elegeu e de quem sou representante, muito divulga os teus trabalhos, a voz do povo me trouxe até aqui.

sócrates

ora… veja bem, sinhô prefeito! (levantando-se) dus’qui mataram virgulino lampião na encruzilhada qui’aculminou im sua captura e execução… eu tava era lá! i aqui istô pra’lhi contá naum apenas a história, pois eu próprio sô a história!

prefeito

ora… veja!… já dizia meu avô que “um homem deve demonstrar o seu valor mais pela palavra dita do que pelo que traz no bolso e o que guarda no banco”. eu lhe dou meu voto de confiança, disso esteja certo! mas me diga outra coisa, como é que pretende dar um jeito nesses cabra? porque pelo que vejo é só tu aqui nessa casinha de taipa.

(silêncio)

prefeito

ou tem algum capanga seu em serviço pelo sertão e por isso não está aqui?… e que armas você pretende usar para enfrentar um bando inteiro?… não vejo nem peixeira, rifle ou espingarda por aqui. isso muito me desembesta. me conte teu plano.

sócrates

(convicto) seu prefeito… seu prefeito… si eu lhi contá das minh’artimanha, como matadô de cangaceiro, o sinhômanda abrir uma firma com’a minha e fica c’us crédito tudim pru sinhô. confii nu’ômi i terá sucesso im potregê sua cidade, i…, veja bem!… poderá inté ganhá releição!

prefeito

(pensativo) hum… tudo bem. tudo bem. mas por quanto sairá teu serviço? que, de antemão, adianto, só será pago após a confirmação do extermínio desse bando dos arredores de minha cidade.

sócrates

oito conto e naum si fala mais nisso.

prefeito

(pensativo) oito conto… tá certo. mas lhe proíbo de dizer que fechou negócio comigo… não está autorizada a divulgação de sua façanha por aqui. assim como também só irei lhe pagar quando todo o bando estiver morto e, claro, comprovadas as mortes. se bem que ainda estou com pé atrás por não saber de seus métodos.

(silêncio)

prefeito

não é possível apenas um homem dar conta de assassinar uma corja inteira de cangaceiros. quem souber de um acordo desses… serei motivo de piada por todo o meio político da região.

sócrates

sussegui, seu prefeito! confii nu’ômi! naum irá si arrependê i nem vortá atráis na iscolha de meus’erviço. mas quem pode mim assegurá qui’u sinhô vai mim pagá? imagini só, eu mato u-bando i depois u sinhô mi passa a perna! hein?!

prefeito

(batendo, levemente, a mão na mesa) confie no homem… cumpra com a sua palavra e terá seu dinheiro.

sócrates

é bom mermo purque (em tom de ameaça) naum vamo querê um prefeito morto, naum é verdade? (aproximando-se do prefeito) saiba qui naum’im intimida nem um pôquim tê-um soldado vigiando sua retaguarda, ô até mesmo um pelotão. podi vim quantos sejam, podi sê quantos fô! porque u-homem é bicho qui naum mim intimida!

prefeito

(olhando para os lados examinando o escritório e se afastando de sócrates) não tente nada comigo porque não ando sozinho e nunca fico completamente sozinho. eu sei como anda a falta de segurança no sertão. entrei apenas com um guarda pra demonstrar apoio e convicção nos teus serviços. (mudando de assunto) mas… e só tem tu aqui mesmo nessa casinha?

sócrates

aqui u político é tu. sô eu qui deveria disconfiar e naum u contrário. mas, si por’acaso, inda quisê discombinar u negócio… inda tem tempo.

(silêncio)

prefeito

viajei seis léguas pra chegar aqui. foi tempo suficiente pra pensar em meus atos.

sócrates

tempo suficiente pra tâbéim está certo do qui-quer-di-mim i tempo suficiente pra colhê informação a meu respeito. mas as veiz a língua do povo é maldosa e naum perdoa a seu ninguém.

prefeito

pelas informações que obtive durante o trajeto, o que sei é que você esteve na tropa do massacre contra o bando de lampião na grota dos angicos, feito que tu acabou me confirmando depois em nossa conversa… ao menos em palavra tu confirmou isso. me contaram também que quem cortou a cabeça de um dos cangaceiros do bando foi tu. poderia me contar como foi? tenho curiosidade de saber como foi o ataque ao bando de lampião, e vindo de quem participou diretamente da ofensiva é algo raro. só sei do relato através da poesia de cordel. e, como tu sabe, tão bem quanto eu, a poesia tem esse dom de romantizar a vida e seus feitos. o poeta é um sujeitinho que gosta de pregar peça nos outros.

sócrates

foi uma incruzilhada planejada pelo tenente. chegamo ao isconderijo dos cabra lá pelas cinco-da-manhã i pegamu todo o bando durmino. chegamu de mansim, mas, logo depois, fomo tacano tiro e matano quem qué-qui’a gente avistassi pelo camim. lampião e maria bonita foram os primeiro. dos trinta cabra matamo onze. mutilamo os corpo e deixamo ele a céu aberto pra’qui os urubu comessi. as cabeça foram decepada e’a-di maria bonita foi cortada com ela inda’viva. a cabeça di’lampião sofreu deformação facial devido as coronhada que levô. as cabeça di tod’os cangaceiro morto foram exposta em cima de lata de querosene na escadaria d’uma ingreja. depois disso naum sei o que’quiu tenente feiz.

prefeito

tu é quase um patrimônio do nordeste. bem que me contaram.

sócrates

se vosmecê sabe tanto… intão por que a disconfiança? si’u povo falô é porque é verdade. povo naum menti.

prefeito

sim. sei. compreendo a sua insatisfação e peço desculpas pelas palavras que proferi. não quero gerar desafetos. quero trabalhar em conjunto. até porque se tu expulsar o bando do cangaceiro oséias… ajudará na minha reeleição.

sócrates

positivo, sinhô prefeito.

prefeito

(depois de um breve silêncio) por que deixou a profissão de soldado, se foi um dos heróis na luta contra o maior líder do cangaço? acredito que um feito desse deve lhe ter proporcionado ao menos um reconhecimento e quem sabe uma promoção em seu serviço.

sócrates

um matadô de aluguel ganha mais qui’um reles macaco do gunverno.

prefeito

(surpreso) então não mata apenas cangaceiros? não sabia que era também um matador de aluguel.

sócrates

(caminhando a esmo) sempre fui. exercí a profissão inda na época di soldado. mas… como já falei… matá por aluguel além de’dá mais dinhêro eu me divirto.

prefeito

como matador de aluguel quem e quantos já matou?

sócrates

(pensativo) num digo quem… mas posso dizê, por alto, uma média di quantos podi tê sido… uns cinquenta já devo ter encaminhando pru’céu… i pr’inferno uns vinte i tanto.

prefeito

e tirar a vida de alguém por profissão num te faz sentir receio do inferno?

sócrates

me-define inferno primêro! inferno deve sê isso qui’a gente vive todo santo dia. tendo qui lutá pra comê, pra vesti i pra sobrevivê. na verdade a gente tenta é sobrevivê, purque vivê mesmo nois num vive… num vai me dizer qui’a vida num teima em sê céu e ao mesmo temp’inferno?

prefeito

sim… concordo com vossa senhoria. mas então… por que disse que mandou tantos para o inferno e tantos para o céu?

sócrates

é tudo uma questão di metáfora. pensei qui’tu fosse bom na gramática, na retórica e na literatura! i naum me venha falá de temor d’inferno pru’meu lado. até porque si veio contratá meus serviço isso ti faiz um cúmplice. s’existi algum castigo ‘pós-morte devido aos meu serviço como matadô naum serei eu u’único a sê cobrado por meus ato. eu posso sê um executô da’vida, mas pra’isso tem que existir’um compradô di serviço, quem manda matá tâbéim é cumplice de assassinato.

prefeito

por acaso não é católico?

sócrates

quem iscolhe uma vida como’a-minha só podi tê muita mágoa com’o sê humano. acredito nu deus inabitável in-nóis.

prefeito

entendo.

(silêncio)

sócrates

intão só digo mais uma veiz: ô paga os oito conto, ô negócio desfeito. naum me importo si acredita ô naum nu’qui-falo. na vida real o’qui manda é o dinhêro i naum a palavra. ô paga, ô intão acordo disfeito.

prefeito

(convicto) amanhã pela manhã, antes do meio-dia, um vaqueiro meu vem aqui lhe fazer o pagamento. e tenho dito.

(os dois se cumprimentam com um aperto de mãos. o prefeito sai. sócrates coloca um papel na máquina de escrever e datilografa alguma coisa. silêncio enquanto a luz vai aos poucos se apagando no palco.)