Comentário de Dimas Macedo sobre o livro “Curral de peixes”

Curral de peixes (São Paulo, Editora Patuá), de Léo Prudêncio, confirma a qualidade e a economia de palavras de um poeta consciente do seu ofício literário, fazendo poesia com aquilo de que ela necessita: a atenção para com a palavra, a fuga com relação ao discurso. Léo, na sua produção anterior, já demonstrou que conhece as formas do Haikai e da poesia de poder verbal e imagético, porque as ideias e a busca de lógica para a construção do poema são armas de que se valem apenas os poetas sem vocação para a poesia. O posfácio/estudo crítico do Dércio Braúna, outro escritor que domina com maestria a sua produção literária, distingue o conjunto dos poemas. Prudêncio irmana-se com alguns dos melhores poetas cearenses de sua geração, entre eles, Mailson Furtado, Bruno Paulino, Alana Alencar, Renato Pessoa, Lisiane Forte, Rodrigo Marques, Dauana Vale e outros (raros) que me fogem agora da memória.

Texto de Fernando Sousa Andrade sobre o “Curral de peixes”

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Livro de poemas Curral dos peixes deixa em aberto os espaços ou a corrente da fantasia na boca da interpretação.
 
Um pescador perguntou para o filho, prole, você já viu peixe fisgar significado? O peixe morde a isca, o que vale dizer, a morte. O que também vale mencionar do sentido. Para conceber sentidos estes olhos que a terra há de comer precisam dar-lhe função. Mas peixe nada; o que significa que ele dá ao corpo, a sensação de balé, de ginga, de um certo contorcionismo expressivo de sentir, ou para chegarmos perto desta resenha, de sentidos.
 
Mas saindo da frase do pescador, o poema, ou seu leitor, poderia pescar sentidos no fundo do que lê? Teríamos que se sim, dizer que a poesia, tem algum cunho referencial. Que ela procura linha ou dar linha para a ceva da interpretação. Mas poesia nada… Ou melhor, a poesia, ela se enrosca na palavra; para desnortear a leitura que fazem dela.
 
É com tentar dizer que o poeta não é triste figura. A linguagem é um buraco onde o artesão não sabe onde pôr a agulha de cerzir. Pensei nisso, nesta ponta de agulha que não fere, não cicatriza, ao ler os poemas do poeta Léo Prudêncio, em seu sombreado, Curral dos peixes, pela editora Patuá. Léo descontextualiza o referencial da poesia, a não um endereço de fazer sentido. Seus poemas estão na casca e não na polpa, porque é na vestimenta que se gruda o conteúdo que a linguagem deve se (dês)trumentalizar de suas amarras contextuais.
 
Preste atenção aos sons que o poeta se apropria na sua artesania da linguagem. Como são os espaços vazios entre suas palavras que passam mais uma ideia de canção, do que do corpo de texto-signo. Ele anima com bom oleiro, uma carpintaria de um zoo, onde os animais criam sintaxes com um repertório sentimental do criador com suas redes de leituras ou tarrafas de homenagens, como Manoel de Barros, Wislawa. É estranho este mar de poetizar mortos? Não, a morte não é falta de sentido, mas sua camuflagem em fazer a palavra (o poeta) oculta-(se), o dizer sensível.
 
 
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Entrevista com o poeta Léo Prudêncio (Revista Literatura e Fechadura)

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1-)  Há uma liberdade incrível na sua escrita poética de não segmentar ou isolar os significados ou sentidos dos seus versos, e sim, algum processo de captura muito livre onde as relações entre som e signo são tão livres de fronteiras ou cercas ou demarcações sobre a arte de escrever\interpretar. Aqui curral parece até um bela ironia. Como é este olhar do poeta com suas cercas?

Olha Fernando… eu nunca compreendi a poesia como uma arte fechada de possibilidades, no meu entender, o fazer poético cabe tudo e às vezes até o não-cabível, se é que exista algo que não caiba no poema. Na adolescência, e boa parte dos anos 20 da minha vida, frequentei o posto de músico em uma banda de amigos chamada Amargo na tangente e lá aprendi a desenvolver melhor o trabalho sonoro da palavra, pois eu ficava mais a cargo de escrever letras, pois nunca fui um exímio contrabaixista. A minha compreensão musical inserida no poema vem dessa experiência que obtive enquanto músico. Também estudei, ainda na adolescência violão-popular, sei o básico do violão apenas para praticar a composição e não apenas reproduzir algumas peças populares de canção. Esse envolvimento com a musica foi um exercício poético pra mim, até hoje não vejo diferença entre poema e canção, claro que cada uma possui um aspecto diferente de elaboração e execução, mas ambas trabalham com a matéria-prima da poesia que é a palavra.

Voltando um pouco ao que você perguntou eu vejo a poesia como uma prática livre de sentidos e ações, o poema não deve ter apenas um significado fechado em si próprio, ele deve expandi as barreiras do sentido e do significado. Um poema bem executado abre as cercas do imaginário-leitor, assim como também um poeta escreve sem algo que o deixe fechado para outros sentidos condutores da poética. Acho também que o fazer poético contemporâneo é “cercado” dessa liberdade, amputar a liberdade é amputar a arte.

2-)  Ha no mesmo tempo uma dança que poderia dizer marinha, algo corrente ou no sentido de correnteza, por que há espaços em branco para imaginação tanto poética com de recepção do leitor. Como trabalha estes espaços que são sem qualquer coesão onde as palavras parecem desvãos sem muros, sem massa entre os tijolos. Com trabalha estes desvãos da linguagem?

Boa pergunta! O poeta deve compreender o poema como um todo, o que pode potencializar melhor os sentidos do poema é observar que ele não é composto apenas de ideias, mas de palavras, como dizia Mallarmé. O poema é um composto verbal e gráfico no sentido de que o espaço em branco que o cerca, na página, é também viabilizador de sentidos. E perceba que a palavra está no plural: sentidos, porque é lá onde o poema desagua em significados em possibilidades, sempre no plural. Eu tenho predileção por dedicar uma página para cada poema, pois ali está o palco da palavra que executa suas funções nesse vazio de sentidos e cabe ao leitor conduzir esses sentidos buscando ali a materialidade desses pequenos silêncios que acompanham o poema, pois ler um poema é também ajudar a escrevê-lo. Mas não falo em um sentido mais Concretista da coisa, se bem que tem um pouco disso também, mas é como eu digo: é importante compreender esses preceitos do Concretismo, pois muito do que fazem hoje, em matéria de poesia, já era praticado precocemente por eles nos anos 1950, que criaram todo aquele alvoroço por conta da reinterpretação do verso. Acho também que o poeta deve provocar o verso e as lacunas deixadas ali.

3-)  Como seu lugar de pertencimento move ou desloca esta sua liberdade poética de movência, de não ser fixo, mas ao mesmo tempo nomear seu lugar de origem?

Eu não sei a que lugar eu pertenço e particularmente não é algo que me preocupo. E acho que não saber é o que faz desse lance algo interessante. Nasci em São Paulo, mas não me sinto paulistano porque fui criado em Sobral, que fica no interior do Ceará, e agora estou morando em Goiânia, embora já esteja pensando em voltar pra Sobral, mas não pra ficar eternamente em Sobral, pois sinto vontade de ir para outra cidade. Mas qual? Não sei… É algo meio louco. (risos). Tem uma fala muito legal do Antônio Cândido que dizia que o poeta deve ser um poeta de cidades, veja, novamente uma palavra no plural. E tenho lido, muito por conta de minha pesquisa no mestrado, teóricos que abordam o tema da hipermodernidade e uma dessas características é o sujeito nômade, globalizado, cosmopolita… Eu me adapto rápido a qualquer ambiente e se for pra ter que me mudar novamente me mudarei sem crises, toda mudança e, por sinal, toda locomoção é benéfica para o individuo seja ele poeta ou não. Essas andanças nômades são de certa forma exercícios de poesia. Porque o poema está no movimento nas páginas, como as pessoas das metrópoles que também estão em constante movimento.

4-)  A natureza parece nos poemas curtos, um elemento de síntese poética como de uma não definição das coisas reais. Você lida com o deslumbramento do sensível e não com sua definição. A arte das palavras é um exercício de contenção?

O poema é uma espécie de oração, de mantra. E definir é definhar. Gosto bastante de praticar a poética das árvores que é mais de contemplar… É algo que aprendi lendo Matsuo Bashô, que é um mestre na arte do haicai, que por consequência é uma arte que viabiliza a contenção verbal. Algo meio Ricardo Reis de saber contemplar o espetáculo do mundo e também um pouca dessa orientação que vem do idioleto manoelês archaico que reinterpreta a semântica verbal das coisas. Essa poética da contenção verbal é um exercício quase que milenar já praticado por poetas do oriente e só agora que desagua por aqui com poetas como Pedro Xisto, Paulo Leminski, Alice Ruiz, Cacaso, Orides Fontela, Nydia Bonetti, entre outros poetas que nos ensinam que no pouco está contido o muito, até porque é lá onde a rasura do silêncio irá dar equilíbrio às palavras.

Grato pela entrevista, Fernando!

 

Entrevista publicada em 06 de Maio de 2020, realizada por Fernando Andrade para a Revista digital Literatura & Fechadura

Conheça 7 poemas do livro Curral de peixes

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acredito na
imortalidade da
palavra.
não creio em intenção
de poeta. a intenção
na poesia é não
ter intenção alguma.
por isso que –
poeta: tecedor de sons
e

poema: tecedor de silêncios.

***

a amor:
é uma falta que me completa
uma falta que não me cabe
um por acaso que me declina
um afeto que me afeta
um não ficar em si

a amar:
é se desprender de si e do outro
é se reconhecer como o menor dos seres
é ampliar a solidão que há em si
é o amor que primavera em mim

e enquanto a amo é que existo

***

1

atravessam
minha visão de sol –
formigas. verão

2

as árvores já
sabem dos anseios do
poeta. Inverno

[…]

11

nada justifica
esse desfarelar de
estrelas sem lua

12

uma árvore
estacionou o outono
no teu ombro –

[…]

2. Me chamam de saudade
[Léo Prudêncio/ Renan Dias/ Kleber Silva]

Já fui poeta
Já fui cantor
Hoje não sei mais
Quem eu sou.
Vago pela cidade
Meus amigos me chamam
De saudade.

Ando pelas ruas a cantar
Ando sozinho a pensar
Como seria tão bom
Ter alguém pra dividir
Essa saudade.

Saudades de você
Saudades de nós
Vontade de ser
E não ser
Vontade de te abraçar

E expulsar essa vontade.

 

link para adquirir o livro:

https://www.editorapatua.com.br/produto/120051/curral-de-peixes-de-leo-prudencio?fbclid=IwAR3b034VlpgOsjdD22pxVrAXcdTD4yqExaDF6hcMczom8KSSVE8SOsAatqg

Curral de peixes

Hoje Renato Russo completaria 60 anos, Bob Dylan está lançando sua primeira canção inédita em oito anos, um presidente asno governa nosso Brasil em meio a uma pandemia e eu divulgando a capa e a pré-venda do meu primeiro livro de inéditas em três anos.

Ele sairá pela Editora Patuá e as vendas já foram liberadas no site deles.

(Mensagem do editor Eduardo Lacerda: Se possível apoiem as pequenas editoras independentes, cada livro vendido durante a quarentena nos ajuda muito e será fundamental para continuarmos quando isso acabar.)

Compre, divulgue, dê livros de presente e permaneça em casa nessa quarentena.

link para o site da editora:

https://www.editorapatua.com.br/produto/120051/curral-de-peixes-de-leo-prudencio?fbclid=IwAR3b034VlpgOsjdD22pxVrAXcdTD4yqExaDF6hcMczom8KSSVE8SOsAatqg

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(IMPRECISADAS) PALAVRAS DE DEPOIS

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POSFÁCIO DE DÉRCIO BRAÚNA

[ 1 ]

O que se diz depois do texto não é dívida que se cobre ao poeta, deste peso seus ombros hão de estar aliviados; é uma justiça que lhe devemos. Muito já labutou ele nesse exercício de desconserto da palavra, de desajuntamento do sentido acostumado, de semeadura do verbo. As contas que lhe cabem devem de ser essas: de medir o tanto de seus coseguimento nesse labor lavral. Eis o que certo e justo é.

Todavia, se palavras de depois se escreveram, sendo elas responsabilidade intransferível de quem as escreveu, há que reconhecer em seu existir mesmo o trabalho de semeadura do poeta. Se há um dizer de depois, há de ser por algo ter ficado no texto, algum resto de qualquer coisa, alguma incompreendida e inconclusória emoção ficada encardida na palavra que, no fabrico do texto, na artesania do poema, não soube o poeta limpar.

É como sempre cri.

Mas se o poeta disser o contrário disto? Se um poeta ofertar sua escritura ao mundo apondo à porta de entrada de sua casa poética um dizer de que nada restou encardido no poema, que (avaro, mesquinho, egocêntrico) tudo ficou no poeta? Se assim ele disser, será possível algum dizer depois desse texto?

O que aqui vai escrito, essas (imprecisadas) palavras de depois, é uma resposta à pergunta ficada; a um poeta (avaro, mesquinho, egocêntrico) que assim procedeu; que tangeu sua escrita avisando já na página-umbral de seu livro que nada ficou no poema, que tudo está lá, com ele, poeta.

Mente esse poeta. Com alguma liberdade que um afeto amigo permite, ouso a afirmação: um poeta mentiu. Mentiste, poeta.

Mas trata-se de uma mentira que é verdade. Eu sei. Eu sei do que fica no poeta. Sei do que, depois de tantas palavras pelas páginas, fica na solidão da carne viva sua, no silêncio encarnado de seu escreviver. Eu sei dessa verdade a que o texto, quando livro feito e dado ao mundo, faz pensar ser mentira; faz pensar que tudo ficou na incisura da palavra grafada sobre o papel. Eu sei que não. Eu sei que tua mentira é verdade, poeta. Ah, como sei!

Talvez seja mesmo como disse o velho mestre, criatura bugral a andarilhar por essas páginas, numas contas suas certa vez confessadas:

Do que eu poderia dizer, resta sempre um déficit de oitenta por cento. E os vinte por cento que consigo falar não correspondem senão ao que eu não gostaria de ter dito, – o que me deixa um saldo mortal de angústia. (Barros, 2010, p. 41-42)

Eu sei desse saldo que fica, poeta! Ah, como sei.

Por isso tanto me desassossegou abrir este livro que o caro leitor, a cara leitora percorreu na tangedura marinha de seu autor, Léo Prudêncio. Por isso me desassossegou escrever estas (imprecisadas) palavras de depois.

[ 2 ]

Desassossego. Sim, foi esse o sentimento ao abrir curral de peixes. Por que Léo Prudêncio tangeu Joan Brossa pra suas páginas? Por que lhe foi buscar esse dizer de que “a emoção ficou no poeta, / não no poema”? Por que quis nos dá a saber dessa fome, já que nós, leitores que somos, guardamos sempre o desejo (confesso ou não) de que a emoção do poeta esteja ali, página após página, à espera, para alimentar-nos – saciez a ir (página à página, poema a poema, verso a verso) dos olhos à alma? Por quê? Não fosse o afeto amigo, confesso, teria atirado o livro ao longe, ao fogo, ao mar bravio, quem sabe. Não deveria poder um poeta assim receber seus leitores à porta de entrada.

Não tendo atirado o livro ao longe, ao fogo ou ao mar, mas todavia permanecendo em desassossego, que mais me restou senão buscar compreender. Por que, poeta? Por quê?

[ 3 ]

Buscando compreender, comecei por atentar às partes do todo. “Imprecisa palavra”, “Poética das árvores” e “Letras (2011-2018)” são as partes do todo Curral de peixes. Relendo, espiando com vagar esses atos de designação organizadores (as partes) de um ente poético (o livro, um todo) chamou-me a atenção como eles dão mostra de uma poética que abre mão do preciso, do enquadramento, do restritivo, do de-finido.

O que muito me agrada. Sou confesso partidário da ideia, professada por certo escrevedor indefinido, de que “definição significa de-finir. Finir, acabar.” Assim sendo, “dar uma definição é dizer a última palavra sobre o assunto.” Definir, portanto, é matar a poesia. O que a poesia faz, em sua prática de “não-finição”, é sempre o contrário dessa morte. Palavras de poesia são palavras “que iniciam a conversa” (Tavares, 2015, p. 60-61). Sempre e reiteradamente. Poesia principia mundos.

[ 4 ]

Algo a que o poeta Léo Prudêncio (ou Léo Samsa?, ou Gregor Prudêncio?… e mais quantos?…), coloca logo de início a quem o lê:

                          mas é que todo dia acordo

                         metamorfoseado em

                         gregor samsa

                        e nem aves avisto mais

                        cá em mim.

O poeta é metamorfose, é aquele que se procura, “até ao mais profundo de meu [seu] ser”, esse lugar profundo “que ainda descasca” (Kafka, 2010, p. 123). Está já aí dito, ao princípio. Será que atentamos a isso logo de imediato, já que talvez (quase sempre, eu creio) nossas armas de defesa ante os ardis dos poetas nem sempre estão calibradas logo de início? Terá sido intencional? Difícil saber, já que o poeta (qual de suas metamorfoses?) declara, também logo ao início:

                        não creio em intenção

                       de poeta. a intenção

                       na poesia é não

                       ter intenção alguma.

Que a tivesse, como haveria de averiguar o poeta o grau de pureza da intenção quando chegada a seu leitor? Que se saiba, ainda não se inventou nenhuma maquinaria capaz de tal transubstanciação.

Isto reconhecido, talvez seja de mais prudência pensar a questão a partir de sua ideia de que “o poeta não representa nem a si próprio”; antes se faz ele, o poeta, um “representante /  involuntário de sua época”.

Não sei como lerá isto o caro leitor, a cara leitora; a mim me parece se tratar de uma confissão de humildade. Sei que há muitos que colocam aos ombros da escrita, especialmente se poética, um honroso e nobre manto de ser ela representante de (um povo, uma cultura, etc.). Aqui, nessa confissão, subscrevo o poeta Prudêncio: também não creio que o poeta represente o quer que seja. E assim pensar não implica o desejo de tirá-lo do mundo, da ordinariedade da vida e devolvê-lo à torre de marfim onde um dia foi crença ser sua morada. Não se trata disto. O poeta está no mundo e no tempo. É sua cria.

O verdadeiro poeta […] está subjugado ao seu tempo, do qual é vassalo e lacaio, seu servo mais baixo. Encontra-se atado a ele com uma corrente curta e ilacerável, está preso a ele […]. Sim, não fora certo sabor ridículo, diria simplesmente: o poeta é o cão do seu tempo. (Canetti, 2009, p. 25)

Poeta, bicho rafeiro; tempo, seu dono. Eis como dito por nome de autenticada autoridade, a quem me ajunto em concordância.

[ 5 ]

Tempo: que poeta será capaz de não lhe prestar vassalagem? De nada (devoção ou esconjuro, resignação ou fúria, etc.) lhe dizer ou perguntar?

Prudêncio o indaga:

                       o que é o tempo

                       quando diante da voz silenciosa

                       de alguma árvore [?]

Que bem se atente e repare: em sua pergunta, o poeta desconserta uma ideia feita – a de que o tempo é a ilusão de sua medição. Não é nas engrenagens dos inventos humanos que ele está. Não é nelas que Prudêncio o procura. Algo, aliás, dito por certo senhor, habitador (disto eu sei) das paredes habitadas de livros da casa de viver do poeta:

“Se alguém me perguntar o que é o tempo, declaro logo a minha ignorância: não sei. Agora mesmo ouço o bater do relógio de pêndula, e a resposta parece estar ali. Mas não é verdade. Quando a corda se lhe acabar, o maquinismo fica no tempo e não o mede: sofre-o. E se o espelho me mostra que não sou já quem era há um ano, nem isso me dirá o que o tempo é. Só o que o tempo faz.” (Saramago, 1996, p. 187)

O que o tempo faz não diz o que o tempo é.

Prudêncio é disto sabedor, eu conjecturo. Tanto que concebeu uma Poética das árvores em que o tempo faz (opera, gasta, seca, semeia, enfim, faz “frutificar o real” – das árvores e de/em nós) para que a vida haja, mesmo que não saibamos dizer o que ela é. Se assim é, portanto tem razão o poeta em indagar o tempo a partir da voz silenciosa das árvores.

Uma voz que não diz o tempo pela atroz imagem do tempo-cursor, do tempo enquanto perpétuo presente, tal como “um cursor deslizando ao longo duma escala”, e cuja característica seria a de não ser ele mais que “um ponto móvel, infatigável, uma luz que corre para as trevas e deixa atrás de si as trevas” (Saramago, 2009).

Não, o tempo não é isto. Prudêncio o sabe. Sua poesia o disse por outras imagens, por outras lógicas. O tempo de sua poesia “é quase um exercício de monastério”. Quase, perceba-se. Porque é mais propriamente uma espécie de tempo-tapeçaria: “o poema / de hoje / possui a tapeçaria desse tempo”. Que pode ser “inadequado talvez”, mas que fazer se “esse é o nosso tempo” e é “este agora que nos rodeia”? Por isso a confissão: “eu sou esse agora: poeta. talvez.

Como se lê, e penso não ser mero acaso (que intenção carregará?, a saberemos alguma vez?), entre o ente confessante (“eu”) e a dúbia identidade confessada (“esse agora: poeta”) habita uma marca (“:”), que a leio quase como uma espécie de penso (no sentido antigo da palavra), de curativo, de uma atadura aposta sobre uma ferida havida por baixo.

É como se a identidade do poeta fosse sua ferida. (Um como se que é. Eu sei. E dói, eu sei.) Faz mesmo lembrar uma confissão do velho mestre bugral, que disse certa feita: “Minha poesia é, hoje, e foi sempre, uma catação de eus perdidos e ofendidos” (Barros, 2010, p. 42).

É como se no sinal gráfico, na convenção escriturária, o poeta desejasse dar a ver (talvez quase sem querer) o lugar de sua dor. Compreende-se: há nudez maior do que deixar ver o que verdadeiramente dói? É certo haver quem rime em sua imaginação a palavra poeta com a pompa de outras nobrezas (arauto, bardo, etc.). Ah, ilusão das ilusões!

                           sou tão comum

                          quanto qualquer outra pedra

                          e sou tão incomum

                         quanto qualquer ser humano

O poeta é bicho qualquer, como qualquer vivente; não há metafísica em sua faina. Sua vida, como a de todas as criaturas, “não é vinil com faixa bônus”, disse-o Prudêncio. Assim, mortal sendo, ciente do “fim do espetáculo” (“o aplauso o silêncio o nada”), que mais resta senão a palavra? Imprecisa, como sabemos, mas, não obstante, “guia mestra do poeta”.

E que se repare (é como fui capaz de ler): a palavra na labuta do poeta tangedor marinho Léo Prudêncio não é alguma espécie de iluminação supra ou sobre-humana, mas antes guia no sentido de labor. “A palavra é a rasura verbal das coisas”, diz ele. Seu papel, em poesia, é o de “corromper a imagem das coisas”. Corromper que interpreto em sinonímia com escavar, perscrutar. Trata-se, poder-se-á dizer, de escrever para buscar respostas ao viver, mas por não haver instrumentos precisos para tal, é sabido de antemão que resposta não haverá. E eis isso a poesia: é a busca mesma, o ato buscador. Como escreve o poeta, “a resposta / está no / ato de / indagar”. Eis isso a poesia. Eis o compreender de que sou capaz.

[ 6 ]

E eis que tendo tangido esse meu desejo de compreender pelas páginas atrás ficadas, tendo já mesmo alinhavado algumas linhas deste dizer de depois, um sentimento levou-me a levantar da cadeira, a abandonar a tela diante dos olhos, a ir às paredes habitadas de livros deste lugar que habito. Buscando mais compreender, andarilhei olhos e mãos pelas prateleiras. Busquei pelo poeta tangedor desta escritura, por sua poética já lavrada. Tenho-a aqui agora, ao perto da mão para o desejo de vê-lo mais ao longe – entenda-se: numa distância de tempo e de sentimento ficado. Tanjo meus olhos pelas linhas marcadas, há tempos, em sua escritura. O que terá ficado marcado de sua poesia na fosforescência que risquei em suas páginas, quando lidas, há tempos? Que memória terá ficado da emoção com que sua poesia me atingiu?

Escrever poemas é como soltar / pássaros de suas gaiolas”, marquei nas páginas de Baladas para violão de 5 cordas (2014). Adiante, noutra página, outra mancha fosforescente: “miravilha é suspender a realidade”. Difícil (impossível) será reviver a emoção de quando meus olhos primeiro deram com estas páginas e, por ela (a emoção), decidido, ordenado à mão o risco fosforescente a marcá-la ali, para que não fosse esquecida. Mas não podendo reviver o sentimento primeiro tal qual foi, o que agora me salta aos olhos é ver que o poeta, já em sua nascença escriturada, proclamava uma palavra livre para poder ser palavra-de-poesia.

 No tempo de depois, na advinda escrita do poeta – Aquarelas: haicais (2016) –, fiz ficar marcada uma de suas iluminuras, de suas imagens miravilhadas, que diz: “a carnaúba, na chuva, / bem que se assemelha a um / samurai em vigília”. Releio e digo-me: eis aí a realidade suspendida; a velha copernicia prunifera da paisagem sertaneja (da paisagem da minha janela) tornada num servo de um império oriental! Eis a teoria praticada, digo-me a mim com um semirriso ao rosto.

E quando o tempo tinha outra nominatura – 2017 era seu registro –, li linhas de Girassóis maduros. As páginas ficaram testemunhadas de muitas marcas. Das tantas, muitas riscaram-se sobre o “silêncio” (a palavra, e mais seus acrescentos), em especial esta a dizer: “assim ele definiu a / poesia que o cercava: um  / cardume de silêncios”; e est’outra, a confessar: “não fui feito apenas / do barro há vestígios de mar / rebatendo em meu peito”.

Como não ler/reler essas escrituras marcadas e não dizer (dizer-me): compreendo; as pegadas de sua poesia estão no caminho feito, nas águas tangidas até estas páginas de aqui. E que se compreenda: não há neste dizer-pensar determinismo qualquer; o poeta poderia (pode) enveredar por todos os caminhos, por todas as águas. Aliás, é isto mesmo o que compreendo como essencial: o fato de sua palavra não ser precisa (“imprecisa palavra” ela é). Imprecisa para poder dar conta de tudo, havendo mesmo de ser como declarou o velho bugre, já tão andeiro errante por estas páginas: “Não sou alheio a nada” (Barros, 2010, p. 49).

Nenhum poeta é. Como poderia ser?

[ 7 ]

E tendo escrito as linhas acima, tendo fincado-lhe um ponto final, tendo depois levantado-me a espiar o dia a derradeirar-se de minha janela (os samurais copernicia prunifera em vigília contra o alaranjado do céu), pensei e disse-me: compreendi; tive de andarilhar pelas águas de tempo desse poeta para melhor perceber que sua poesia não é alheia a nada, que ela se faz de tudo, de sons e silêncios costurados, das arquiteturas de solidões de suas paisagens (Sobral ou Goiânia; sertão ou asfalto; a página ou o mundo – e retifico: onde se lê ou, leia-se e). Pensei e disse-me: compreendi; a poesia toda (o rebanho marinho de todas as criaturas e organias) deste poeta é tudo isto feito palavra (imprecisa palavra), tudo isto que é poética (palavra, ainda que ingrafável) das árvores e sua vivescência, tudo isto que é música (letra, som, silêncio). Compreendi, disse-me.

[ 8 ]

Compreendi então (penso, pressinto) porque o poeta tangedor Léo Prudêncio quis apor à entrada desta sua poética o dizer de que “a emoção ficou no poeta, / não no poema”. Creio que o fez porque, enquanto poeta, sabe que nada fica em inteireza (tal qual) na palavra. Enquanto travessia, a palavra leva uma memória, uma semente. Semeada por quem a lê, o barro em que deitará raízes já não será o mesmo barro (tal qual) o do poeta. Nesse sentido, o que o poeta lega (o que deixa, o que intenta que fique) no poema é um aprendizado, uma partilha humanizadora. Não a emoção mas o aprendizado, a partilha da capacidade de se emocionar diante de um tempo e de um mundo regidos pelo total contrário deste gesto humanizador.

Bem pode que isto possa parecer despicienda sutileza, mero efeito retórico para florear (quiçá disfarçar alguma falha de raciocínio ou argumentação), todavia não o é, creiam-me. Penso que quando um poeta cita, quando pratica essa enxertia, há de ser para que, por esse ato, algo novo (uma emoção nova, já não tal qual estava na página matriz) se faça.

[ 9 ]

Compreendi, digo-me.

E não será esta minha a mesma (tal qual) a compreensão do poeta quando concebeu sua escritura. Disto eu sei. E é bom que assim seja. Talvez (ou certamente) essa escrita de depois só valha por isto: como registro ou testemunho de um aprendizado pela poesia. Por isso não ficou aqui, nestas linhas, lição qualquer a dizer do ser e não-ser da poesia, sequer uma precisa análise do que este livro é.

O atento leitor, a atenta leitora não encontrou aqui, nestas linhas, referências às marcas da poesia concreta e suas reelaborações, à revisitação a certos imaginários e geografias (como o sertão), às alusões e aos usos de vocabulário musical, não encontrou alguma historiografia das formas poéticas breves (haicais) ou das relações entre escrita poética e música. Enfim, são os silêncios que aqui, de pronto, reconheço.

Mas confesso que não me agradaria escrever doutro modo. Penso que mesmo numa escrita de depois deve-se sempre cuidar o mais que se possa da liberdade de alma do leitor para escrever-em-si a poesia vinda do outro.

E penso que um livro múltiplo e aberto como é Curral de peixes pede essa liberdade. Não há de ter sido acaso que ao que é feito para prender (curral) Prudêncio tenha ligado viventes do mundo das águas, mundo fluido, desobediente das malhas de cercar e prender. Nessa imprecisão da metáfora (passe a redundância), li as liberdades que o poeta quis tanger em seu cardume de palavras: a sua (o que fica consigo, a emoção só sua) e a do leitor, em seu aprendizado de fazer da palavra uma “descruzadora de sentidos”.

* * *

Dércio Braúna – historiador e escritor, é doutorando em história social (UFC), com pesquisas sobre as relações entre história e literatura, notadamente nas obras de Mia Couto e José Saramago. É autor de obras poéticas (dentre elas Metal sem húmus; Aridez lavrada pela carne disto; Esta solidão aberta que trago no punho), contos (Como um cão que sonha a noite só) e estudos historiográficos (entre os quais Nyumba-Kaya: Mia Couto e delicada escrevência da nação moçambicana).

 

Textos citados:

BARROS, Manoel de. Manoel de Barros: encontros [Entrevista]. Org. Egberto Gismonti. Rio de Janeiro: Azougue, 2010.

CANETTI, Elias. Sobre os escritores. Trad. Kristina Michahelles. Rio de Janeiro: José Olympio, 2009.

KAFKA, Franz. Diários [1910-1924]. Trad. Torrieri Guimarães. Belo Horizonte: Itatiaia, 2000.

PRUDÊNCIO, Léo. Aquarelas: haicais. Guaratinguetá-SP: Penalux, 2016.

PRUDÊNCIO, Léo. Baladas para violão de 5 cordas. Guaratinguetá-SP: Penalux, 2014.

PRUDÊNCIO, Léo. Girassóis maduros. Belo Horizonte: Moinhos, 2017.

SARAMAGO, José. A bagagem do viajante. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.

SARAMAGO, José. A invenção do presente. Disponível em: <https://www.josesaramago.org/a-invencao-de-presente/&gt;. Acesso em: 20 abr. 2010.

TAVARES, Gonçalo M. O torcicologologista, Excelência. Lisboa: Caminho, 2015.

Dauana Vale, sobre o livro “curral de peixes”

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Ler poesia para silenciar e alcançar outros sons. O encontro com a voz de si, o espanto com a palavra torcida, esquecida, não dita. Experimente não entender o que está escrito. Conceda-se sentir, apenas.

Neste Curral de peixes há um cotidiano que clama por liberdade. Nosso poeta, pássaro que é, “não tem costumes de chão”. Vê diferente, nos confere sua intensidade para que também possamos assumir o desejo de voar. Isso, de voar, não é privilégio de artista, é necessidade de ser gente, ninguém suporta o real todo instante. Fugas são vitais.

Léo Prudêncio está entre o clássico e as dores de agora. Transita pelos tempos como quem vai do antes para o depois feito menino pegando carona na nuvem de algodão.

 

[texto para orelha do livro Curral de peixes]